Minha nova perspectiva de autocuidado
Volta e meia eu falo sobre autocuidado. Talvez algumas pessoas possam achar estranho uma consultora de amamentação falando de coisas além de mastite, de produção de leite e de cuidados com o mamilo. Mas consultoria de amamentação é só o serviço remunerado que eu presto. O meu foco maior é o apoio às mulheres.
Todo o nosso fazer é político. Quando estou apoiando uma família em relação à amamentação, estou, em última instância, olhando para esta pessoa que amamenta e para este trabalho não-remunerado fundamental. Com o meu serviço, eu tento fazer com que esse trabalho seja menos custoso para ela.
E, em tempos de crise, seja essa crise o puerpério, ou seja uma crise política, sanitária ou as duas, o autocuidado é revolucionário. É mais fácil subjugar um corpo triste, sem potência. Se cuidar, tentar se manter bem e feliz é estratégia de guerra.
Nos últimos meses, eu evoluí muito neste quesito e venho compartilhando com vocês. O meu objetivo é inspirar outras mulheres a se cuidarem também, cada uma à sua maneira. No ano passado, ouvindo as minhas reflexões, uma seguidora teve um insight de que tirar um tempo fora dos cuidados com a casa e com o bebê para preencher uns formulários era autocuidado. Por ter preenchido esses formulários e enviado, ela conquistou a sua vaga dos sonhos. Uma vaga que vai permitir que ela apoie muitas outras mulheres. Se isso também não é revolução…
Eu gosto sempre de, quando compartilho alguma experiência, deixar claro de que lugar eu estou falando. E espero que se a sua realidade é muito diferente, que você possa adaptar alguma situação e se beneficiar também. Então, falando dos meus privilégios, eu sou uma mulher cis branca, classe média alta, com um emprego formal e uma atividade autônoma, morando numa capital.
Eu sempre fui elétrica, ligada no 220v. Desde os 16 anos, eu sempre desempenhei duas atividades “grandes”. Fiz escola técnica ao mesmo tempo que estagiava; fui aprovada num concurso e comecei a trabalhar enquanto fazia faculdade; segui como empregada enquanto clinicava, depois puerperava, e hoje eu sigo empregada enquanto faço consultoria de amamentação e cuido da minha filha. Sempre havia dado conta de tudo. Aplicava hacks de produtividade, sistemas de organização… Ser essa pessoa ativa, que não parava um minuto, não tinha tempo para nada, me definia. Para dar uma ideia, quando fui mudar de cidade uma vez, as amigas da faculdade me deram uma abelhinha de biscuit, trabalhadeira, com ferramentas de jardinagem, pra eu guardar de recordação.
Eu sabia que isso não era bom, mas é como eu aprendi a ser. Até que uma vez eu li uma frase: “uma lista interminável de tarefas é a melhor forma de aprisionar uma mulher”. Aquilo virou uma chave. Eu sabia racionalmente que precisava mudar, mas não sabia como. Deitar e não fazer nada era algo inimaginável. Ir para o trabalho de carro sem aproveitar para ouvir um podcast? Brincar com minha filha sem aproveitar para organizar o quarto dela? Assistir a um filme sem ficar remoendo o tanto de coisas que eu tinha pra fazer?…
Mas a idade veio chegando, e, com ela, a cobrança da conta de tantos anos de estresse acumulado. No carnaval de 2020, eu comecei com um zumbido no ouvido, constante, que me acompanha até hoje. Fiz todos os exames e não é nada físico. Na terapia, cheguei à conclusão de que pode ser um aviso para puxar o freio. E que o meu corpo é muito, muito bondoso por me mandar apenas um zumbido no ouvido…
Um mês depois, veio a pandemia, o isolamento. Como puxar o freio? Acumulando o emprego, a atividade autônoma, os cuidados com a filha e com a casa. Sozinha. Mas eu tive uma vida toda para aprender que eu dava conta. Então, nos primeiros meses, eu não só não puxei o freio, como acelerei o motor. E quase pifei. Aí passei a aceitar ajuda, a flexibilizar algumas coisas. E a praticar autocuidado. Na época, era arranjar tempo para fazer atividade física, meditar, escrever… Ou seja, preparar o corpo e a mente para aguentar mais um pouco a sobrecarga. Não resolvia. Eu continuava cansada, estressada, emagrecendo, perdendo cabelo…
Foi quando veio a flexibilização do isolamento, quando eu fui obrigada a voltar a trabalhar presencialmente no emprego, que eu tive espaço mental para avaliar de fora o que eu tinha passado. E foi quando a ficha caiu realmente: eu não quero envelhecer sem saúde. Não quero deteriorar as minhas relações, principalmente com a minha filha, por conta do estresse. O que então eu podia fazer?
A mudança veio do reconhecimento do meu limite, da noção de que eu não queria e de que não PRECISAVA mais chegar no limite. Aqui entra toda a minha carga de privilégios. Eu posso olhar para a minha rotina e priorizar. E manter apenas o essencial.
Reconhecida na pele a necessidade da mudança, o segundo passo foi aceitar que eu precisava não dar conta de tudo. E de uma forma bem objetiva. O dia não tem horas suficientes para eu seguir fazendo tudo, com saúde. Ou eu não faço tudo, ou eu sigo deteriorando a minha saúde, com estresse e falta de sono.
O dia tem 24 horas. Sete das quais eu preciso dormir, para acordar bem. Para o trabalho remunerado, são mais oito horas, considerando preparação e deslocamento, e mais duas horas se eu faço uma consultoria por dia. Só com essas atividades fixas já são 17h, 70% do meu dia. Nos outros 30%, a prioridade é para Lunna. Mas ainda tem whatsapp pra responder, algo para organizar, boleto para pagar, livro pra ler, aula para assistir. Coisas que são flutuantes, mas que tomam tempo.
Mas reduzindo a este essencial e fazendo extras quando dá, eu não me sinto sobrecarregada, estressada. Estou abrindo mão de muita coisa? Estou. Tem uma vozinha capitalista buzinando no meu ouvido que eu poderia estar fazendo mais cursos, produzindo mais conteúdos para divulgar o meu trabalho, ganhando mais dinheiro? Tem. mas eu olho pra ela e digo: prioridades. Vai haver um momento mais na frente. Quando Lunna já não me demandar tanto. Quando ela já não tiver interesse de compartilhar seus mil projetos com papel. Quando preferir ficar sozinha no quarto do que me gritar mil e quinhentas vezes, sempre que eu preciso fazer algo “particular”. Agora, os meus privilégios me dão possibilidade de ESCOLHER focar nela, curtir e regar a nossa relação, nesse finalzinho da primeira infância.
Aceitar esse fluxo é libertador. Saber que eu estou exatamente onde eu escolho estar, fazendo o que eu escolho fazer, também.
Essa priorização do essencial abriu espaço para viver mais, para respirar, para contemplar as coisas com menos estresse. É assim que tem que ser pra mim. Eu desliguei a voz, introjetada na gente pela sociedade patriarcal e capitalista, que diz o tempo todo que deveríamos estar produzindo. Eu me permito não produzir, no sentido capitalista da palavra, em alguns momentos. Em outros eu sinto que inclusive estou produzindo mais, por estar focada em uma coisa por vez. Não quer dizer que eu abri mão dos meus projetos. Nos finais de semana em que estou sozinha, eu tenho espaço mental para observar o que está na minha mente para resolver e focar nisso. Sem abrir mão de fazer outras coisas que também gosto: comer bem, assistir, ler… Agora mesmo, é um domingo à tarde. Eu acordei tarde e já descansei muito o meu corpo menstruado que pede pausa. Depois do almoço, eu deitei de novo e ouvi um podcast só para me divertir. Depois, sentei para escrever algumas coisas, inclusive este texto, que eu estava prometendo a diversas mulheres com que conversei nos últimos tempos e que espero que as ajude: é um trabalho com propósito. Mais tarde, eu vou fazer pipoca e assistir a um filme. Estou bem, feliz.
Tem fases do mês em que eu estou mais ativa, e, naturalmente, eu produzirei mais, e assim vou seguir. Sem me cobrar de ler 52 livros em 2021. Nem de fazer atividade física, meditar, fazer mandala lunar, escrever um diário. Amo tudo isso, mas não quero arranjar tempo para fazer agora. Estou cuidando do essencial para a minha saúde física e mental: dormir bem e controlar o estresse. Em algum momento, virá a fase em que caberá fazer uma atividade física, por exemplo (se você já estiver nessa fase, aproveite, faz bem demais). O que não quero mais é estar absurdamente sobrecarregada, dormindo pouco e trabalhando muito apenas para dar resposta à voz capitalista e patriarcal. E acordar mais cedo para meditar apenas para não surtar diante da sobrecarga. Eu simplesmente estou escolhendo não me sobrecarregar.
Uma placa com a palavra privilégio está estampada na minha cabeça piscando o tempo todo, eu sei. Mas antes uma privilegiada feliz e potente, que pode seguir atuando no mundo, fazendo bem e satisfeita aquilo a que se propõe. Prefiro isso a ser uma privilegiada sobrecarregada e doente, sem potência para fazer nada além de trabalhar infeliz e cansada.
Veja bem: se a SUA ESCOLHA agora é focar no trabalho, nem que isso signifique sacrificar o seu sono, vá em frente! A realização de um sonho pode depender disso. A saúde da sua família em geral pode depender disso. Só tenha certeza de que é uma escolha consciente e não de uma voz movida por forças ocultas.Finalizando, eu quero contar que, com essa mudança toda de focar no essencial, abriu-se espaço para cuidar da minha casa. Para querer ter mais vida. Nunca me imaginaria cuidando de planta e de bicho. “Dá muito trabalho e eu não tenho tempo”. Mas, hoje, me dá um imenso prazer olhar ao redor e ver vida o tempo todo. Hoje, a minha casa é VIVA! Tem bicho, tem planta, tem gente que dorme bem, que ri o tempo todo, que se diverte, que contempla o pôr do sol, que bola projetos, que sonha… Se isso não for autocuidado, não sei mais o que é.